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Le blog Sud Express

Perguntas à Língua Portuguesa

29 Mars 2008, 15:06pm

Publié par Mémoire Vive / Memória Viva

Por Mia Couto.

Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões?

Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.







Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas. Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?











Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas?

Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:

*        Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?

*        No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?

*        A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?

*        O mato desconhecido é que é o anonimato?

*        O pequeno viaduto é um abreviaduto?

*        Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.

*        Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?

*        Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?

*        Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?

*        O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?

*        Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?

*        Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?

*        Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?

*        Mulher desdentada pode usar fio dental?

*        A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?

*        As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?

*        Um tufão pequeno: um tufinho?

*        O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?

*        Em águas doces alguém se pode salpicar?

*        Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?

*        Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?

*        Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?

*        Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português ­ o nosso português ­ na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos
atalhos da savana.

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas ­ o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos.

Devolver a estrela ao planeta dormente.

Nota : a
imagem (2) é da autoria de Henrique Matos, Dimensões ocultas, óleo sobre tela, 100 x 80 cm. 1986.
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M
<br /> Aproveito para dar os parabéns pelo blog!!<br />
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M
<br /> Muito bom!!<br />
Répondre
H
Caro Mia Couto, fico muito sensibilizado por ter introduzido uma imagem de uma pintura da minha autoria (Dimensões ocultas, pintura a óleo sobre tela de 1986) no seu blogue, só que não está identificada e deveria estar. Agradeço que na utilização de outras imagens elas estejam devidamente identificadas. Continuação de bons textos literários. Um abraço.
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M
<br /> Caro Henrique,<br /> <br /> A culpa não é do Mia Couto mas bem minha : foi um lapso meu não introduzir a devida identificação, aliás costumo identificar, quando é possível, as imagens que aparecem neste blogue. Peço-lhe<br /> portanto desculpa por este erro, erro que fica agora corrigido. Um abraço e volte sempre.<br /> Miguel Padeiro - Memória Viva<br /> <br /> <br />